terça-feira, 25 de janeiro de 2011

SINESTESIA CULTURAL DE DOMINGO - por Cronicando

            Hoje tinha tudo para ser mais um domingo como outro qualquer, não fosse pelo fato de eu ter levantado os olhos da última página de um fantástico livro. Carlos Ruiz Zafón monta uma trama com um primor impar, onde consegue com maestria e sutileza mesclar estilos diversos.

            Há alguns dias eu começara a lê-lo e infelizmente o tic-tac do tempo nos rouba as opções como nos mais belos romances. Eu não tinha escolha. Os compromissos sem conta desviavam a minha atenção da melodia harmoniosa incapaz de impressionar o sentido auditivo, porém inegável pelos demais.

            Encontro-me em uma antiquíssima casa onde fora uma fazenda dos ancestrais da minha esposa. Hoje habitada por sua tia-avó de oitenta e cinco anos. Paredes antigas já descascadas como esperanças desfeitas, chão de madeira escuro que range os seus sentimentos mais profundos ao ser pisados pelos que passam alheios, forro de palha, móveis rústicos, cheiro de passado. O soalho reverbera sons de saudade ou de algo a ser esquecido.

            De uma janela com um azul remoto, nesta tarde de mesma cor, ouço sons que despertam a consciência para a atualidade. Crianças conversando e rindo em uma vibração jovial. Observo além da janela jabuticabeiras que evaporam natureza. As árvores são capazes de repetir cada segundo dos tempos já esvaídos pelos ventos aqui ocorridos. A brisa mais uma vez traz um aroma de terra úmida.

            Como é mágica a leitura. Há dois minutos eu passava pelas ruas de uma Barcelona por volta de 1950. Agora, mais mineiro que nunca, saio da janela e sento-me no fogão a lenha para saborear o café forte que cheirava toda a casa, entremeados por queijo fresco e uma prosa saudosa e divertida.

            No último gole a sorver, fico com o olhar evasivo e contemplo as duas coisas que mais me chamaram a atenção no fim do livro. Uma, que são as pessoas de bom coração que fazem a vida valer a pena, e a outra, que uma boa leitura nos remete a bons momentos como este que agora desfruto ao lado da minha família.

            Olhando a minha volta, com meio sorriso, só eu percebo o gracejo que a vida me proporciona. Estar simultaneamente em tempos antigos em pleno século XXI permeado por características do primeiro e do terceiro mundo. A viagem ao passado e ao futuro só é impossível para a ciência que não aceita a fantasia. Nas letras dispostas neste papel junto com a sensibilidade do momento, servimo-nos do holismo com naturalidade de poeta sem pretensão de sê-lo ou ofendê-lo.

            Nada indigno de qualquer razão. Nenhuma reflexão alheia a sensibilidade. Somente a mistura de tudo junto em harmonia. A sinestesia em um segundo.

            O leitor aceita mais uma xícara de café antes do próximo “causo”?

sábado, 22 de janeiro de 2011

A FELICIDADE DE GÖETHE - por Cronicando

            Hoje me sentei em um restaurante charmoso, ambiente requintado e simples. A comida é ótima, proveniente da mente da chef criativa como ela só. Fui muito bem atendido e servido.

            O local já abrigou uma residência elegante e pequena. Traz marcas do que já foram paredes em um salão em “L” com mesas aconchegantes. Da janela a minha frente, avista-se a varanda simpática e logo depois os carros e pedestres que transitam alheios na rua.

            Enquanto aguardava o pedido, observei atrás de mim um quadro cobrindo toda a parede do fundo do restaurante. Nele estava escrito em giz a seguinte frase de Johann Wolfgang von Göethe: “Na plenitude da felicidade, cada dia é uma vida inteira”.

            Palavras fortes, a começar pelo nome do sagaz escritor alemão. A felicidade por si só já nos parece complexa e às vezes distante, plena então...

            O que vem a ser felicidade e o que vem a ser a sua antítese, a tristeza? Cada indivíduo pode depositar o conceito que bem entender, pois cada um tem seu próprio cabedal de experiências vividas que vez por outra, nem ele próprio sabe interpretar. A coleção destes momentos bons e ruins solidifica nossa personalidade à medida que constrói nossas horas. Pergunto: e na plenitude da tristeza, cada dia representa o que? Uma vez que este dia parece interminável.

            Arrisco a dizer, agora em meio às garfadas saborosas de um prato deslumbrantemente lindo, que a tristeza é filha dileta da solidão. Ela só está presente na ausência. Ausência de tudo, de amigos, de ocupação, de esperança, de busca, de ideias, de sonhos, tudo. Neste momento tenho a companhia de um sabor inigualável, um pensamento e a cordialidade de um papel e lápis que aceitam minhas agressões sentimentais sem reclamar. Tenho certeza que quando terminar tudo isto, caminharei pela rua em busca de outra companhia. Até encontrar, esta busca me acompanha para afugentar a tristeza.

            Não desejo aprofundar o pensamento neste momento, mas se tenho tanta companhia, o que sinto agora? Se não é tristeza, porque não estou feliz? Talvez esteja aí a explicação da palavra plenitude. Talvez ela seja a minha próxima e mais necessária busca, pois preciso disto para entender o que é uma vida inteira em um dia. Só espero que a plenitude que eu encontre seja a da felicidade.

            Agora pago a conta. É... Se falamos de plenitude em um dia, preciso organizar meus pensamentos para começar esta busca amanhã, porque enquanto levanto, carrego o estômago feliz e o bolso horrorizado. 

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

IGREJA DE BÊBADOS - por Cronicando

Publicado no  http://letrasdobviw.blogsopt.com
Lá reduzido para atender ao espaço.


            Uma vez o cantor Cazuza disse que “o banheiro é a igreja de todos os bêbados”. Como agora eu não tenho nada pra fazer em lugar nenhum, resolvi investigar.

            Estou em um banheiro de uso coletivo. Fechei-me num box, sentei-me e pus-me a pensar enquanto aguardava alguém entrar, para ouvir seu vomitório de bêbado ou preces de pecador.

            Surpreendi-me com pouco tempo de espera. Os poucos que eu ouvia entrar só traziam silêncio reticente. Certamente a alma manifesta seu som inaudível aos ouvidos humanos. Dava para perceber pelo pisar oprimido e respiração cansada. A impressão que eu tenho é que eram despertados apenas pelo estrondo da descarga retumbando amém. Trazemos a alma marcada pelas dores experimentadas ao longo da existência. O que nos causa torpor é tudo aquilo que desvirtua o nosso caminhar reto e feliz.

Ainda necessitamos de um local ao qual santificamos o ambiente pela fé. Esperamos que em um futuro qualquer este local fosse o coração do homem, ou seja, esteja dentro dele e não do lado de fora. Hoje em dia a igreja é para onde vamos quando intentamos buscar limpeza espiritual, por para fora as impressões negativas que nos embriaga no caminhar. Segregar as mais diversas impurezas coletadas e armazenadas por não sabermos como tratá-las.

Foi então que entendi que somos todos uns entorpecidos pelas lutas íntimas. As agressões morais causam náuseas à ânima que reluta em expor-se. Com a falta de coragem, recorremos ao abrigo sagrado de nós mesmos e depositamos os rejeitos nocivos a nossa felicidade. Como neste momento a máscara cai, procuramos o recinto em que não vão nos descobrir por dentro, nos descortinar. O banheiro. Entendo agora porque o banheiro é a igreja de todos os bêbados.

            Talvez o homem fosse mais feliz se montasse os santuários nos braços abertos dos amigos. Assim ele se manteria consciente. Ébrio de si.

            Levanto-me, ainda meio trôpego, estômago queimando, garganta arranhando o amargor do fel e saio. Sem ouvir descargas.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

TIRADAS INFANTIS - Por Cronicando

            Uma vez escrevi para os amigos leitores sobre uma façanha do meu terceiro filho. Algo que aconteceu há muito tempo. Confesso que ele é uma fonte inesgotável de material para escrever, mas isto é assunto ao qual voltaremos em outra oportunidade. Como tenho quatro lindos filhos, hoje queria registrar um fato ocorrido, também há uns bons nove anos aproximadamente, com a minha segunda filha.

            Ela sempre foi muito curiosa e comunicativa, aliás, bastante comunicativa. Continua assim atualmente, com o acréscimo de um grande número de palavras ao seu vocabulário. Sou capaz de apostar que ela verbaliza todas elas todos os dias. Por volta do seu terceiro ou quarto ano de vida era uma criança que se expressava com veemência. Parece que supria a carência de palavras ainda não conhecidas por pressão nas cordas vocais. Quando contrariada então... afff... Soltava o verbo com toda vontade e braveza. Hoje não é diferente. Continua ativa e, não poderia deixar de registrar, prestativa e carinhosa.

            Lembro-me que eu estava em uma instituição religiosa, presente em uma reunião para ensaio do coral no qual eu tocava violão. Não tinha com quem deixar minha pequenina falante, então a levei comigo. Eu carregava uma breguíssima, porém providencial pochete. Garanto aos caros leitores que não andava com o referido objeto em torno da cintura, o que não minimizava a baranguisse, confesso. Mas fazer o que? Foi tão útil na época. Carregava objetos que eu precisava utilizar no meu ofício, sem contar que havia acabado de passar na farmácia e adquirido alguns poucos e pequenos produtos que precisava em casa. Remédios para febre, para dores de cabeça e camisinha. O respeitado leitor pode até pensar que eu poderia privá-lo destes detalhes, porém garanto que é importante para o entendimento do desfecho da situação a qual fui exposto.

            Para podermos nos concentrar na tarefa edificante e prazerosa que a música religiosa nos proporciona, permiti que minha lindinha ficasse brincando com a pochete. Ela andava como se estivesse em um shopping com uma bolsa. Penso que sua mente criativa de criança a transportou realmente para as compras. Balbuciava palavras inaudíveis movimentando os lábios como se conversasse com alguém. O problema ocorreu no momento em que ela encontrou o que queria em uma loja qualquer, para a minha infelicidade. Sentou-se no chão do salão, abriu a bolsa para pagar as lúgubres compras efetuadas e eis que depara com um pacote desconhecido. Sim, caro leitor, o pacote de camisinhas.

            E foi naquele momento, quando o silêncio se instalou após execução de uma peça suave e penetrante na nossa alma, que minha pequena ergueu o referido objeto, cortando como navalha a minha introspecção e postura quando o vi. Com o braço em riste, entoou as palavras que eu não sabia quais seriam, mas temia de antemão.

            - Pai, eu quero bala.

            Pois é. Em meio às faces rubras e quentes, olhares e sorrisos amistosos, pus-me também a sorrir.

            Uma criança é assim, preenche a nossa vida das mais inusitadas formas. Todas muito bem vindas.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

REFLEXÕES SOBRE A SOLIDÃO - Por Cronicando

                Sozinho no ventre da mãe. Filho único. Tudo só.

                Já repararam a solidão do número “um”? Sempre o achei soberbo, olhando para cima, olhos cerrados, queixo erguido. Ainda põe-se de costas para o infinito positivo. Ignorando seus iguais, seus irmãos.

                Não... Ninguém quer uma vida assim. O ser humano vorazmente trava batalhas constantes contra a solidão. Casam-se à menor oportunidade e enchem a casa de herdeiros genéticos para lutarem cada um contra seu próprio vazio. Os que não suportam casar enveredam-se em volumosos relacionamentos românticos ou de amizades tão vazios quanto eles próprios, que antes de se mostrarem ao que vieram já encontram guarida nos corações temerosos do nada. A maioria de nós já viveu tudo isto. Casamos, descasamos, casamos novamente, povoamos o mundo de mentes solitárias e nos iludimos em meio a tantas outras. Mesmo em meio à multidão, a luta contra o vazio dentro de nós continua . Talvez esteja aí a resposta que todos que tememos a solidão, buscamos.

                Voltemos ao número “um”. Se ele descesse do pedestal do seu orgulho e olhasse a sua altura com os globos bem abertos, perceberia o infinito presente a sua volta, interagindo entre si. Se percebesse a sua anoréxica estrutura, entenderia que o vazio é interior.

                Amigo leitor, que agora tem a minha sincera companhia através destas letras, para não nos sentirmos sozinhos é preciso perceber a nós mesmos, nos aceitarmos, nos amarmos. Quem não existe não compartilha e quem não compartilha não existe.

                Obrigado pela companhia.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

A MENTIRA DO ESPELHO - Por Kenny Rosa

Não sei mais o que fazer para convencer as mulheres com as quais convivo que elas não estão gordas. Pode parecer estranho, mas nenhuma mulher está satisfeita com suas formas ou aceita que o seu peso esteja ideal ou até mesmo adequado.

Dizem que uma mulher se apronta não para si ou para algum homem e sim para outra mulher. Para que seja observada e admirada. Se isto for verdade, pergunto qual será a real intenção? E gostaria de saber também como as mulheres acham que vão causar alguma boa impressão a alguém se não estão satisfeitas com elas mesmas?

Elas se referem ao espelho como um amigo inseparável ou um inimigo implacável. Vez por outra fico pensando se a parte de amizade só serva para conquistar fingidamente a simpatia daquele que reflete o nosso exterior?

Confiem em mim, um espelho não é nada amigo, portanto nada confiável. Ele mente.

Por que o espanto? Mente sim, e muito mal. Já repararam que ele mostra o nosso lado esquerdo no direito e vice-versa? Tem mentira mais deslavada que esta? Ele tenta enganar e ludibriar descaradamente. Observem como as nossas imagens em fotos são tão diferentes daquelas que vemos nos espelhos.

Vão por mim. A mulher por si só já é maravilhosa. Ao caminhar exala o perfume dos cuidados que tem e da sensibilidade que a compõe.

Convido vocês mulheres, para outro exercício. Desafiem seu espelho. Antes de encará-lo pela manhã, preparem o espírito abrindo a janela e de olhos cerrados sintam o cheiro da manhã, conscientes que ela está ali para vocês. Exclusivamente para acariciar sua beleza única. Alimentem-se de confiança. Só então vão seguras e firmes diante dele.

Já até imagino a sena. Ele sorrindo sarcástico, aguardando para mais uma piadinha sem graça pensando que virão a passos vacilantes. Um close no olhar seguro da mulher que caminha tranqüila pelo cenário. Ambiente embalado pela música suave que faz fundo para um assobio cortante de suspense melódico, antecipando ao telespectador a iminência de um duelo.

Vão convictas de que ele pode ver o que está por fora, mas jamais vai encontrá-las por dentro. Aproximem-se dele sem observar seus eflúvios inebriantes. Foquem somente no reflexo dos seus próprios olhos e façam uma viagem pelo interior deste ser espetacular, filho de Deus, único na natureza, você. Descubram a beleza de carregar no interior das veias e artérias o DNA Divino. Percebam que estas órbitas permitem ver a essência com seus temores e coragens, virtudes e defeitos, tristezas e alegrias e entendam porque são chamadas de janelas da alma. Mostrem ao espelho quem vocês realmente são. A mais fantástica das criaturas. A mulher.

Os espelhos precisam conhecer melhor as donas que tem. Só quando eles começarem a analisar com sinceridade o que elas trazem por dentro, poderão perceber a beleza exterior que também encanta a todos.

Mulheres, não tenham medo do que não existe.

domingo, 9 de janeiro de 2011

HOMEM VELHO COM A CABEÇA EM SUAS MÃOS - Por Kenny Rosa

            Estava eu de pé diante dele. Um senhor já de idade que insistia em afundar a consciência nalgum momento infeliz.

Encontrávamo-nos em uma casinha pobre de algum lugar da cidade de Haia, na Holanda de 1882. Ela tem soalho em madeira, onde as tábuas corridas amareladas por falta de cuidados, vinham em minha direção. Partiam da parede escurecida pelo tempo atrás dele e de uma lareira acesa, que tentava em vão, aquecer as esperanças daquele velho sentado em uma cadeira solitária, nada solícita. Alheia à suas dores.

O senhor voltara o lado direito das suas costas para aquela luz crepitante e opaca que parecia ser a única coisa viva naquele ambiente. Eu me encontrava do lado oposto. Via aquele homem sem rosto pela sua dianteira esquerda, reclinado, apoiando seus cotovelos nos joelhos tesos. Os pés, dentro das botas surradas pelo trabalho duro, apontavam em direção da sua mais profunda intenção. Fugir de si mesmo.

Aquela simples roupa azul era insuficiente para encobrir o frio, doravante os honrados esforços do madeiro em desalinho pela combustão do mísero oxigênio local. Da mesma forma, suas mãos calejadas e ossudas, mesmo encobrindo seus olhos, não nos impediam de entrever a sua dor. Imaginávamos as órbitas penduradas, no exercício da mais triste expressão. A sua calva rodeada pela experiência de vida descorada pelo tempo, tanto quanto qualquer outro ponto a ser observado naquele quadro, sugeria uma consciência limpa, porém cansada e desejosa da mesma sorte que intentavam os pés. Livrar-se daquela tormenta.

Fora daquele casebre estava toda sua história, toda causa de sua dor. A porta cerrada atrás de mim, um pouco a esquerda, esperava preguiçosa que aqueles pés levassem o infeliz ao inevitável. Eu, por minha vez, desejava o mesmo. Queria saber o que houve, se havia algo a ser feito. No entanto, antes que eu pudesse me virar e ir em direção ao entendimento, o sino da capelinha perto da minha casa soa tilintando alegria e esperança.

            Retraio a visão daquela pintura de Van Gogh, onde o “homem velho com a cabeça em suas mãos” continuava imóvel. Será que ele não percebeu a metáfora? Que o destino dos seus pensamentos e vontades se encontra em suas mãos?

            Afasto ainda mais a visão e percebo a magia da arte disponibilizada pelos bits que se expressam em meu computador.

            Não descobri o problema que afligia aquele homem. Talvez porque quem deveria perceber a metáfora seria eu. Assunto para outra crônica.

            Agora volto ao meu cotidiano, ansioso pela próxima viagem proporcionada pelos veículos de expressão da emoção. Imagem, som, palavra ou movimento.

imagem do google, publicado em 
ideiaspublicaveis.blogspot.com

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

VISITA A GUIMARÃES ROSA- Por Kenny Rosa

            O dia cinzento desenha a paisagem no pára-brisa do carro. O movimento psicodélico fica por conta dos pingos da chuva que inebria a beleza da manhã no vitral a minha frente. Quanta contradição. Um adorável dia cinza, uma bela paisagem molhada e descorada. E o mais interessante, a torrente chuva banha a terra dos sertões mineiros onde foram pisados por “Manuelzão” e “Miguilim” do saudoso Guimarães Rosa.

            Pequenas árvores espaçadas de troncos rudes e tortuosos confrontam a relva verde claro. São as mesmas árvores que compõe o cerrado ressequido de onde sobe o pó amarelado na seca, encobrindo o horizonte montanhoso que balança no azul quente. O que encobre a vista agora é a névoa da precipitação. Os cinzas ao longe, são unidos em seu espectro por nuvens espessas.

            Chego à cidadezinha no ocaso da manhã, já sem chuva. Paro o carro em frente à simpática pracinha que tem como pano de fundo a estação ferroviária capaz de contar muitas histórias dos que vieram e foram ao longo de várias décadas. Após breve pausa contemplativa e um suspiro de saudade sabe-se lá de quê, dou meia volta, atravesso a rua e entro na casa de João Guimarães Rosa.

            Emoção a flor da pele.

            Uma casa muito antiga e simples. Soalho em madeira, janelas grandes na vertical, telha colonial. Na sala de estar uma imagem do ilustre escritor em “marca d’água” sustentando um belo trecho do seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. No corredor a primeira porta a direita apresenta o seu escritório. Na mesa a escultura da vaca com o bezerro dentre outras estatuetas premiativas. Uma máquina de escrever preta. Não identifico a marca, só sei dizer que é de um requinte incomum acompanhado da simplicidade característica destas bandas sertanistas. Por esta ferramenta de tradução de uma mente brilhante já bailaram muitas vezes os dedos que compuseram as sinfonias mais sublimes deste sertão.

            E lá estava ele. O próprio.

Diante da máquina novamente. Diante de mim.

Hesito por um instante. São tantas perguntas travadas pela condição do momento. Queria fazê-lo sentir meu aplauso pela capacidade impar de criar. Criara até mesmo palavras de forma singular. Perguntar sobre os famintos de Grande Sertão Veredas com suas visões deturpadas e deitar lucubrações sobre as deturpações visuais dos famintos de hoje.

            Não ouso interrompê-lo. Ele continua com o olhar seguro na nova página. E eu retiro o meu olhar do momento mágico e o volto para o relógio. Infelizmente, é hora de ir. O sistema me rouba o tempo, mas jamais tirará de mim o infinito daquele momento tão inspirador quanto a página de um bom livro.

            Entro novamente no carro após despedir-me. Sol a pino agora. Tomo meu rumo, aliás, ambos, o real e o imaginário. Um contrastando o outro, mas não sobreviveriam sozinhos.